em 2002, a boitempo editorial publicou uma coletânea de ensaios de perry anderson reunidos sob o título de
afinidades seletivas. a tradução vem atribuída a paulo césar castanheira, ressalvado apenas um dos ensaios: "agradecemos à fundação editora unesp a cessão do ensaio 'as afinidades de norberto bobbio', traduzido por raul fiker e publicado em
zona de compromisso" (p. 11, "nota da edição").
entre os onze autores tratados por anderson nos textos reunidos em
afinidades seletivas, cabe a gramsci o mais extenso, intitulado "as antinomias de gramsci" (p. 13-100). este mesmo ensaio saiu pela editora joruês em 1986, em tradução de juarez guimarães e felix sanchez, numa coletânea chamada
a estratégia revolucionária na atualidade, da série crítica marxista.
seguem-se alguns trechos extraídos das duas edições, a título comparativo. o texto como um todo, nas duas traduções (ou melhor, naquilo que aparenta ser uma só tradução), segue o mesmo padrão de identidade abaixo ilustrado.
em nome de juarez guimarães e felix sanchez (joruês, 1986)
Nos dias de hoje, nenhum pensador marxista posterior ao período clássico é tão universalmente respeitado no Ocidente como Antonio Gramsci. Nem há algum conceito tão livre ou diversamente invocado entre as forças de esquerda do que [sic] o de hegemonia, que ele tornou de uso corrente. A reputação de Gramsci, localizada e marginal fora de sua Itália de origem no início dos anos sessenta, transformou-o, uma década após, numa celebridade mundial. A homenagem ao seu trabalho realizado na prisão - trinta anos após a primeira publicação de seus
Cadernos do Cárcere - está sendo, afinal, intensamente prestada. A ignorância sobre o seu pensamento ou a escassez de estudos sobre ele deixaram de ser obstáculos à sua difusão. (p. 7)
em nome de paulo césar castanheira (boitempo, 2002)
Nos dias de hoje, nenhum pensador marxista posterior ao período clássico é tão universalmente respeitado no Ocidente como Antonio Gramsci. Nem há algum conceito tão livre ou diversamente invocado entre as forças de esquerda do que [sic] o de hegemonia, que ele tornou de uso corrente. A reputação de Gramsci, localizada e marginal fora de sua Itália de origem no início dos anos
1960, transformou-o, uma década após, numa celebridade mundial. A homenagem ao seu trabalho realizado na prisão - trinta anos após a primeira publicação de seus
Quaderni del carcere - está sendo, afinal, intensamente prestada. A ignorância sobre o seu pensamento ou a escassez de estudos sobre ele deixaram de ser obstáculos à sua difusão. (p. 15)
mesmo um erro palmar como "conceito
tão livre ...
do que" (em vez de "tão livre... quanto") foi mantido nas duas edições, além de alguns errinhos em relação ao original, como "a reputação de gramsci ...
transformou-
o numa celebridade mundial", em vez de "transformou-
se em fama mundial", ou o uso de "intensamente" para
fully, além de detalhes como o mesmo torneio de frase no final do trecho citado. segue o trechinho correspondente no original:
Today, no Marxist thinker after the classical epoch is so universally respected in the West as Antonio Gramsci. Nor is any term so freely or diversely invoked on the Left as that of hegemony, to which he gave currency. Gramsci’s reputation, still local and marginal outside his native Italy in the early sixties, has a decade later become a world-wide fame. The homage due to his enterprise in prison is now— thirty years after the first publication of his notebooks—finally and fully being paid. Lack of knowledge, or paucity of discussion, have ceased to be obstacles to the diffusion of his thought.
chamo a atenção para esses detalhes, pois parecem indicar que a tradução de guimarães e sanchez não chegou a passar por uma revisão mais detida, à diferença de outros casos anteriormente apontados.
em nome de juarez guimarães e felix sanchez (joruês, 1986)
O próprio Gramsci estava, na verdade, bastante consciente da necessidade de uma cuidadosa distinção das formas históricas sucessivas do "consentimento" pelos explorados à sua exploração e de uma diferenciação analítica de seus componentes a cada momento. Ele criticou justamente a Croce por afirmar em sua
História da liberdade que todas as ideologias antecedentes ao liberalismo eram da "mesma indistinta e árida cor, isentas de desenvolvimento ou conflito" - e sublinhava a especialidade do refúgio da religião sobre as massas a Nápoles dos Bourbons, o poderoso apelo ao sentimento nacional que a sucedeu na Itália e, ao mesmo tempo, a possibilidade de combinações populares das duas. (p. 30)
em nome de paulo césar castanheira (boitempo, 2002)
O próprio Gramsci estava, na verdade, bastante consciente da necessidade de uma cuidadosa distinção das formas históricas sucessivas do "consentimento" pelos explorados à sua exploração e de uma diferenciação analítica de seus componentes a cada momento. Ele criticou justamente a Croce por afirmar em sua
História da liberdade que todas as ideologias antecedentes ao liberalismo eram da "mesma indistinta e árida cor, isentas de desenvolvimento ou conflito" - e sublinhava a especialidade do refúgio da religião sobre as massas a Nápoles dos Bourbons, o poderoso apelo ao sentimento nacional que a sucedeu na Itália e, ao mesmo tempo, a possibilidade de combinações populares das duas. (p. 44)
neste trecho, além da pura identidade, destaca-se a manutenção de um surpreendente "
a especialidade do refúgio da religião sobre as massas" para o original "
the specificity of the hold of religion on the masses"
["a especificidade do domínio da religião sobre as massas"].
em nome de juarez guimarães e felix sanchez (joruês, 1986)
Pois o debate no seio da social-democracia alemã teve uma sequela reveladora na social-democracia russa. Poucas semanas depois, Martov escreveu um artigo na Die Neue Zeit sobre O debate prussiano e a experiência russa. Aprovando calorosamente o conjunto das teses de Kautsky, Martov argumentou que a Rússia realmente estava longe de escapar às lições que elas [sic] podiam ser extraídas. Não deveria ser permitida a Rosa Luxemburgo utilizar a revolução de 1905 como um trunfo contra a política oficial do SPD na Alemanha. Sua análise da revolução não deveria ser admitida pelos socialistas ocidentais, em nome do privilegium odiosum que fazia da Rússia um caso excepcional. A experiência russa era agora no fundamental semelhante, em todos os sentidos, à experiência europeia em seu conjunto. Onde ela se desviou do padrão, em 1905, terminou em desastre. A mistura de greves econômicas e políticas exaltadas por Rosa Luxemburgo era mais uma fraqueza do que uma força do proletariado russo. O levantamento [sic] de Moscou foi o resultado calamitoso de um movimento lançado "artificialmente" para um "enfrentamento decisivo" com o Estado. (p. 63)
em nome de paulo césar castanheira (boitempo, 2002)
Pois o debate no seio da socialdemocracia alemã teve uma sequela reveladora na socialdemocracia russa. Poucas semanas depois, Martov escreveu um artigo n
o Die Neue Zeit sobre
"O debate prussiano e a experiência russa
". Aprovando calorosamente o conjunto das teses de Kautsky, Martov argumentou que a Rússia realmente estava longe de escapar às lições que elas [sic] podiam ser extraídas. Não deveria ser permitid
o a Rosa Luxemburgo utilizar a revolução de 1905 como um trunfo contra a política oficial do SPD na Alemanha. Sua análise da revolução não deveria ser admitida pelos socialistas ocidentais, em nome do
privilegium odiosum que fazia da Rússia um caso excepcional. A experiência russa era agora no fundamental semelhante, em todos os sentidos, à experiência europeia em seu conjunto. Onde ela se desviou do padrão, em 1905, terminou em desastre. A mistura de greves econômicas e políticas exaltadas por Rosa Luxemburgo era mais uma fraqueza do que uma força do proletariado russo. O levantamento [sic] de Moscou foi o resultado calamitoso de um movimento lançado "artificialmente" para um "enfrentamento decisivo" com o Estado. (p. 85)
em nome de juarez guimarães e felix sanchez (joruês, 1986)
Os debates clássicos, por isso, ainda continuam a ser, em vários aspectos, o mais avançado limite de referência que possuímos hoje. Não é assim um mero arcaísmo relembrar as controvérsias estratégicas que ocorreram quatro ou cinco décadas antes. Reapropriá-las [sic] é, pelo contrário, um passo na direção de uma discussão marxista na esperança - necessariamente modesta - [sic] que ela tome uma "forma inicial" de teoria correta para hoje. Regis Debray falou, em um parágrafo famoso, da dificuldade permanente de ser contemporâneo como [sic] o nosso presente. Na Europa, ao menos, temos ainda de ser contemporâneos com o nosso passado. (p. 74)
em nome de paulo césar castanheira (boitempo, 2002)
Os debates clássicos, por isso, ainda continuam a ser, em vários aspectos, o mais avançado limite de referência que possuímos hoje. Não é assim um mero arcaísmo relembrar as controvérsias estratégicas que ocorreram quatro ou cinco décadas antes. Reapropriá-las [sic] é, pelo contrário, um passo na direção de uma discussão marxista na esperança - necessariamente modesta - [sic] que ela tome uma "forma inicial" de teoria correta para hoje. Regis Debray falou, em um parágrafo famoso, da dificuldade permanente de ser contemporâneo como [sic] o nosso presente. Na Europa, ao menos, temos ainda de ser contemporâneos com o nosso passado. (p. 100)
em nota recente, a editora boitempo comunicou que dava por encerrado o processo de auditoria interna a fim de eliminar qualquer vestígio de irregularidade em seu catálogo (
ver aqui). no entanto, o ensaio "as antinomias de gramsci" parece ter escapado a seu crivo, pois não é mencionado na referida nota.
em vista do empenho que a editora tem dedicado a apurar alguns problemas apontados em suas publicações, quero crer que se disporá também a avaliar o caso acima exposto.
sobre os outros problemas apontados em seu catálogo, ver aqui.
adendo: paulo césar castanheira, até onde consigo entender, é um tradutor sério e respeitado, com boas referências, por exemplo, na editora revan. tem diversas traduções publicadas por diversas editoras, e não conheço nada que o desabone como pessoa e como profissional.
se seu nome aparece atribuído a algumas pretensas traduções publicadas pela boitempo editorial, eu jamais suporia nem jamais me permitiria supor que tenha sido ele o responsável por tais irregularidades. ademais, suas relações profissionais com a editora não me dizem respeito e sou da opinião de que elas não vêm ao caso. o que vem ao caso é a fidedignidade dos créditos, a veracidade das informações sobre a autoria dos textos traduzidos, a integridade intelectual da obra ofertada ao público leitor: todos esses quesitos são sempre e inapelavelmente de responsabilidade da casa editorial que a publica. em vista disso, acrescentei nas especificações dos nomes nos trechos exemplificativos a expressão "em nome de", e passarei a adotar este procedimento em todos os cotejos que eventualmente eu vier a apresentar neste blog.