19 de jun. de 2023

a fazenda dos animais

 A fazenda dos animais 

Creio que uma das áreas a que melhor se aplica o sapientíssimo dito “Ninguém é dono da verdade” é, provavelmente, a tradução. E a infindável variedade de seus frutos é o que faz da tradução algo tão interessante e fascinante.

Assim é que Animal Farm, a fábula escrita por George Orwell nos idos dos anos 40, pode ser lida em Portugal e no Brasil sob diferentes títulos: A quinta dos animais, O porco triunfante, O triunfo dos porcos, A revolução dos bichos e, last but not least, A fazenda dos animais.

De meu ponto de vista, um elemento útil para me nortear no oceano relativista em que nós tradutorxs podemos navegar – e talvez, ou não, nos afogar – é o original. Não ouço mentalmente nenhuma voz clamando para que me afaste de um claro e singelo Animal Farm: A fazenda dos animais, sem maiores problemas nem grandes dúvidas. Aí alguém pode objetar: “fazenda”? Melhor “sítio” ou “granja” ou “herdade”… Tenho lá minhas razões para preferir “fazenda” – mas que seja, não vou ficar brigando por causa disso.

Até aí, é simples. Mas, atendo-nos ao título mais usado no Brasil – A revolução dos bichos –, fico um pouco confusa, em primeiro lugar, com “bichos”. Que bichos, gente? Pois, quanto a isso, a grande questão é que Orwell estabelece muito cuidadosamente, muito meticulosamente, muito sistematicamente, uma divisão do reino animal dentro da obra. E a estabelece adotando uma terminologia muito específica e constante ao longo de toda a sua fábula.

Vejamos, pois. Por animals ele designa única e exclusivamente o que chamamos de animais domésticos, de trabalho, criação e reprodução: vacas, cavalos, cabras, ovelhas, porcos, galinhas, gansos, pombos. Aram as terras, puxam carroças, pisam o trigo, fornecem ovos, servem de reprodutores e assim por diante. Note-se – e isso é bonitinho – que também há entre eles uma gata: ela vive fugindo ao trabalho, mas os outros animais não se zangam com sua mandriice porque, quando aparece depois das jornadas de trabalho, é sempre muito meiga, carinhosa e afetiva. Ou seja, entre os animais domésticos inclui-se também o que chamaríamos de animal de estimação (não de trabalho, criação etc.). Além da gata, há os cachorros, também incluídos entre eles na função de cães de guarda, de pastoreio e mesmo de caça. Esses são os animals orwellianos.

E os outros? Os ratos, os coelhos do mato, os pardais? Orwell nunca, nunca os trata como animals: são wild creatures, não domésticos e sim silvestres. Aliás, é muito interessante que, depois de expulsos os homens e instaurado o novo regime – animal – na fazenda, um dos líderes, o porco Bola de Neve, cria “o Comitê de Reeducação dos Camaradas Silvestres (o objetivo desse comitê era domesticar os ratos e os coelhos)”, para integrar as wild creatures à sociedade animal – que não tenha dado muito certo, são outros quinhentos.

E, por fim, temos beasts: aqui, sim, eu diria “bichos”. Com o termo beasts, Orwell abarca a totalidade dos seres animais, domésticos e silvestres. Daí a importância da canção Beasts of England, que se torna por algum tempo o hino da nova sociedade animal: todos os seres animais, os domésticos e os silvestres, nele se congregam. Aliás, logo no começo, quando o Maioral começava a organizar os animais da fazenda, havia até algumas dúvidas se os bichos do mato, as criaturas silvestres, seriam considerados “camaradas” dos animais domésticos. “Os bichos do mato, como os ratos e os coelhos, são amigos ou inimigos nossos? Vamos pôr em votação. Faço a seguinte pergunta à assembleia: os ratos são camaradas?”. Sim, foram considerados camaradas quase por unanimidade (e vale notar que apenas os cachorros votaram contra: afinal gostavam de perseguir os ratos e acompanhavam os homens na caça às lebres).

Bem, a questão central é que animals, wild creatures e beasts designam coisas diferentes, de abrangência e interrelações bem específicas. Posso em sã consciência tratar indiscriminadamente os termos? Falar em “bichos” para me referir especificamente aos animals? Ou, inversamente, falar em “animais” para me referir especificamente às wild creatures? A meu ver, creio que não. Se Orwell fez assim, tinha lá suas razões para isso – as quais, aliás, ficam muito claras durante a leitura do texto. Assim, não entendo como eu poderia falar em Fazenda dos bichos ou, ainda menos, em Revolução dos bichos. Repisando, não foram as beasts que se rebelaram, foram apenas os animals.

E os animais não fazem uma revolução: os animais se rebelam, se levantam numa rebelião. Não têm qualquer programa revolucionário, a não ser aspirações de tipo cooperativista e autogestionário de longo prazo. Mobilizam-se por insatisfação, rebelam-se contra a opressão: que essa rebelião coletiva depois resulte numa nova situação, cujo comando virá a se concentrar progressivamente num número cada vez mais restrito de animais, são outros quinhentos. Dá-se a rebelião, mas não se implanta concretamente qualquer tipo de coisa que se assemelhe às aspirações que acompanhavam a rebelião: e é esse é o drama da coisa.

A propósito, é o papel fundamental dessa mobilização pessoal contra a opressão que Orwell deixa tão claro em relação a si mesmo, no famoso prefácio à edição ucraniana: “Tornei-me pró-socialista mais por horror à opressão e ao descaso a que estava submetida a parcela mais pobre dos operários industriais do que por qualquer admiração teórica por uma sociedade planejada”. É esse elemento subjetivo, a profunda insatisfação com o status quo, amparado em outro elemento subjetivo, o sonho com um mundo melhor, que leva os animais da Fazenda do Solar a se erguerem contra a situação, e não uma adesão a um projeto revolucionário pré-elaborado. Não à toa, em momento algum encontramos o termo revolution em Animal Farm; é sempre, única e exclusivamente, rebellion. A única vez em que encontramos algo similar a revolution é um derivado: o adjetivo revolutionary, tratado como algo descabido, quando o porco Napoleão se reúne com um grupo de fazendeiros humanos e declara, em discurso indireto citado: “Por muito tempo circularam rumores – divulgados … por algum inimigo malévolo – de que havia algo de subversivo e até de revolucionário na posição dele e dos seus colegas. … Nada podia estar mais distante da verdade!”.

Em suma, em tradução pode-se fazer praticamente qualquer coisa. O que nos dá bússola, guia, norte, é o texto original. Nada, porém, obriga que o tomemos como bússola, guia ou norte. Vai de cada um. De minha parte, prefiro me ancorar no autor. E viva A fazenda dos animais!


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4 comentários:

  1. Parabéns à tradutora.

    Acompanho esse blog há tempos, através do qual tomamos conhecimento do maior escândalo de plágio de tradução da história do mercado editorial brasileiro. Além de sua vasta experiência como tradutora, projetou-se como uma voz proeminente pela idoneidade editorial no Brasil.

    A comparação com outras edições é inevitável. Observo desde 2021 o desenrolar das publicações de Orwell em domínio público, e a manifestação de Denise é, com todo o respeito aos demais tradutores, a que mais transmite segurança ao leitor-consumidor. É, afinal, o ideal que procuramos na tradução de uma obra tão delicada politicamente, e historicamente instrumentalizada como propaganda: o autor como Norte, e nada mais.

    Cabe aqui minha provocação amistosa a respeito da multiplicação dos Orwells coincidindo com tempos de pandemia e escalada populista de direita. Se meu comentário vai ser aprovado, não sei. Procuro ser tolerante. Bem, o caso é que a mais famosa e difundida tradução de “Animal Farm” no Brasil tem viés militarista e antissocialista, tendo sido feita por um militar (à época, tenente) do antigo regime. É portanto contrária à visão e composição originais do autor. Infelizmente, foi a primeira que li, foi através dela que conheci a obra, e mal podia imaginar que a palavra “revolução”, presente no título e muitas vezes no texto, sequer aparece no original, a não ser em forma de adjetivo em tom depreciativo (“revolucionário”) uma ÚNICA vez. Esse é apenas um dos mais flagrantes problemas da tradução antiga.

    Uma problemática parecida se faz perceber agora não em todas as novas traduções em si do texto, mas mais na editorialização recente de Orwell em domínio público, sobretudo suas obras-primas, A Fazenda dos Animais e 1984. Conheço o posicionamento político de Denise, e de Carlos Berriel, que posfaciou essa edição da Fazenda. São diferentes do meu. Sou profundamente anti-marxismo e anti-demagogia de esquerda. Divirjo, portanto, também da visão política original de Orwell, e mesmo quando li a tradução antiga, apesar de desconhecer o viés do tradutor, felizmente estava ciente da visão marxista do autor. E mesmo assim, mesmo discordando dele, li, apreciei e acrescentei a obra à minha cultura pessoal. O mesmo acontece com muitos outros leitores contrários ao marxismo, que são clientes regulares de editoras renomadas mas elas parecem não se dar conta disso. A política não pode ser um processo monolítico onde supostamente se divide "quem é a favor de alimentar os mais pobres" e "quem é contra". Conservadorismo, liberalismo, são movimentos legítimos e não são antagônicos a valores humanos fundamentais. Também não são antagônicos à tolerância. Dentre os leitores (clientes de editoras de linha editorial inclinada à esquerda) e eleitores contrários à visão marxista, socialista ou social-democrata existem milhões de pessoas tolerantes que merecem respeito. (parte 1/2, mandarei fatiado por causa do limite de caracteres)

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  2. (continuando, parte 2/3)

    As obras-primas de Orwell foram instrumentalizadas como propaganda antissocialista sim, em traduções enviesadas, mas a escolha delas para tal propósito, e o fato de muitos pensadores e militantes da direita referenciarem-nas para avançarem argumentos contra a esquerda, evidencia que elas têm um caráter universal. Os textos originais de 1984 e de “Fazenda” são puros e humanos o suficiente para transcender fronteiras de opinião política de quem os lê e se tornarem clássicos universais atemporais. E são honestos o suficiente para provar pontos de argumentação anti-autoritária de qualquer espectro político. Esses textos envelheceram bem: não ficaram datados, ao contrário, o teste do tempo os agraciou com a imortalidade.

    O mesmo não se pode dizer da fortuna crítica produzida desde 2015 no mundo ocidental para essas obras. Em minha opinião os “extras de Orwell” – os prefácios, posfácios, as apresentações, por parte de “curadoria especializada” envelhecerão como propaganda. Envelhecerão como a tradução militar brasileira, a qual acredito que será descontinuada pela Cia. das Letras. Ela, a Antofágica e a Troia (selo da Geração Editorial) colocaram no mercado exemplares bem carregados ideologicamente. A Troia lançou apenas Animal Farm (não 1984), numa edição vastamente comentada e expandida inteiramente em conformidade com a visão doutrinária da esquerda brasileira, num design e layout editorial que parecem a de uma bíblia de estudos. E lembro Raymond Aron quando ele qualificou tal doutrina política como algo análogo a uma religião. A edição da Troia vai mais longe que qualquer outra, com a apresentação afirmando logo de cara que a obra é "oportuna" porque o mundo passa por uma onda "conservadora", o que supostamente ameaça a democracia, que segundo essa visão parece ser ameaçada sempre que a esquerda perde eleições.

    Quanto à idoneidade do texto em si das traduções novas, até onde sei, como leigo e cliente, as traduções são sérias e fiéis à obra original, mas encontrei ao menos uma que foge a essa regra, com um problema flagrante, grave, de viés partidário contemporâneo: o 1984 da Tordesilhas traduziu "Thought Police" como "Milícia Mental", uma clara referência anacrônica à política brasileira e ao clã bolsonarista. Nada em "Thought Police" grita para que seja traduzida como algo muito diferente de "Polícia do Pensamento", a não ser, me parece, a revolta pessoal do tradutor ao usar sua pena e nanquim intrusivamente na obra alheia, para criticar um grupo político contemporâneo. Que o faça em obras de sua própria autoria.

    Mas ora, se Orwell era marxista, qual o problema? Não seria essa fortuna crítica mais fiel à visão anti-autoritária e progressista dele? Não seria mais fiel do que a interpretação editorial da LVM/Gazeta do Povo ou da Avis Rara (selo da Faro Editorial)?
    (continua...)

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  3. A provocação que quero deixar é: essa manifestação sistemática de entidades, organizações e empresas marxistas e progressistas em discurso, mas capitalistas e reacionárias em estrutura ("empresa socialista" é um oxímoro, toda empresa é por definição capitalista), é realmente fiel ao que pensaria Orwell se fosse vivo hoje? Ele combateu em guerra. Ele escreveu uma distopia contrária a toda e qualquer estrutura de opressão sistemática e de supressão da liberdade de pensamento. Ele escreveu uma fábula (a deste post) na qual retrata Trotsky (Bola de Neve) de forma positiva. O Trotskismo é hoje uma vertente da esquerda que encontra alinhamento com liberais clássicos, anarcocapitalistas e libertários da direita, no sentido de defender certos direitos de forma incondicional. O presidente e fundador do principal partido trotskista brasileiro, recentemente, tem encontrado uma estranha sintonia e ressonância com partes do discurso da direita.

    E Orwell, como estaria? Será que ele acompanharia a posição política de executivos da BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, detentora de mais de 9 trilhões de dólares? Ele concordaria com o posicionamento político do Fórum Econômico Mundial? Será que ele concordaria integralmente com a Pfizer? Será que ele concordaria com textos de apresentação de artistas privilegiados, multimilionários, beneficiários desse mesmo regime que lhes permite serem distopicamente idolatrados e ganharem milhares de vezes mais que profissionais essenciais? Será que ele concordaria com os textos selecionados segundo a linha do departamento de TLLC da USP, uma instituição conformista (reacionária estruturalmente) e elitizada? Lembremos que essas obras-primas foram concebidas justamente como crítica a um regime que se denominava de esquerda. A semelhança da esquerda contemporânea com certos elementos totalitários de 1984 é tão flagrante que mesmo a Cia. das Letras permitiu que um de seus colaboradores de fortuna crítica ponderasse sobre tais similaridades. Orwell estaria sentado passivamente replicando os pontos do discurso padrão progressista, concordando com a elite capitalista mundial? Ou estaria (ainda à esquerda, mas desvinculado do establishment) concebendo um novo 1984 denominado “2030″? É de se pensar.

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  4. muito bons seus comentários, iago, agradeço!

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